quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Ela e Lina

Qual é o distanciamento mínimo entre o autor e sua obra? Qual é a espessura exata da tênue linha que separa realidade e desejo?
O mundo literário e a licença poética juntos velam a versátil porção de ego e covardia que existe e atormenta todo e qualquer criador. Nem surto, nem absurdo. O silêncio grita, as pausas sussurram e o mundo que se lê atravessa o filtro da escolha. A palavra é a reiteração do silêncio. Há intenção ainda que haja inconsciência. Silêncio e palavra: mesma pessoa, duas faces; igualmente egocêntricos e covardes.
Eu - lírico, heterônimos, pseudônimos, simbioses, narrador onisciente, a síndrome de pandora assola o criador e a criatura assume todas as caras do ridículo, as sobre doses de perversão ou paixão, a crueldade e seus requintes e a cobiça pela mulher do próximo.
Quem bebeu do antídoto da palavra é porque já provou do seu veneno e sabe que artifícios narrativos, gêneros e recursos de linguagem na verdade são discípulos e atuam pra que ela – a palavra - realize a sua função primordial com êxito: seduzir. Não importa o radical do verbo nem seu resultado final (convencer, aclarar, elucidar, explicar, etc. e tal), antes de tudo vem a sedução.
Ao divagar sobre isso tocada por uma certeza irredutível ela não hesitou. O jogo de conquista da palavra e da vida a fizeram lembrar que não por casualidade, e muito menos por ironia, as mais antigas profissões do mundo são atribuídas aos contadores de estórias e às prostitutas. Concluiu, então. A sedução faz parte do ser.

Seu nome é Ela. Só que ela nunca entendeu porque a batizaram assim. Quiçá por uma crise de identidade de sua mãe ou por mera excentricidade de seu pai, até hoje não foi capaz de descobrir. O fato é que entre Ela, a que muitos conhecem e o eu, só seu, há um abismo enorme. Por isso eu que sou e me chamo Ela me sirvo da palavra pra tocar você, ele e qualquer novo estranho que eu ainda não conheça por detrás do pronome. Por isso que eu, Ela, que sempre me abasteci do outro em experiências vicárias, resolvo contar mais uma história que começa em sacanagem e acaba em paixão, pra que você também viva a sua, ainda que aqui, na ficção.

Ela era puta e eu sabia. Tava ali pra todo mundo ver. A distância entre ela e outro qualquer se traduzia em cifras. 50 euros por cada 20 min. O seu preço não era muito diferente dos demais. Quase todos os profissionais do sexo registrados e regulamentados em Amsterdam atuam nessa faixa. Algo justo. No Red Light District a máxima global de que imagem é tudo assume papel coadjuvante, e a sede humana por si só converte-se em moeda do prazer. Em uma cidade tão plural e tolerante como Amsterdam não poderia ser de outro jeito. Prostitutas e travestis das mais variadas nacionalidades, etnias e arranjos físicos cruzam a fronteira que separa o bizarro do sublime e protagonizam a igualdade das diferenças. Por isso paga-se pelo ritual, não pelo dote. O espectro de luz que dá nome ao bairro e ilumina as janelas transformadas em vitrines para que as moças exponham os seus conteúdos atua com altruísmo deslocando o grotesco e o parâmetro esteta para uma mesma categoria numa escala simbólica: o desejo. O vermelho que naturalmente inspira virilidade e paixão estabelece também a democracia dos gostos e dos corpos. Há clientela para todos.
Era o meu terceiro dia de estadia na cidade e a terceira noite consecutiva que eu regressava ao Distrito Vermelho acompanhada por dois amigos - que por livre e espontânea pressão eu conseguia convencer às caminhadas noturnas reiteradas ao bairro. A verdade é que nem a paisagem encantadora da cidade nem o seu roteiro cultural relevante foram capazes de exercer tanta influencia sobre mim. Pela primeira vez eu dava de cara com a prática do milenarmente proibido, ali, diante de quem quisesse ver; escancarado, e de forma legal. Deparar-se com a marginalidade legitimada causa estranhamento. Mas, o estranho quando não produz excitação no mínimo gera curiosidade. Foi assim comigo, e acredito que seja assim com as centenas de pessoas de todas as partes que diariamente visitam os becos e vielas dali.
Apesar do frio cortante, atravessar cada canal da cidade em direção ao parque de diversão para as minhas devassidões me fazia latejar. Os canais empedrados se fundiam em mim e me inundavam. –Um bairro só de sacanagem, tudo o que eu sempre sonhei. Eu não cansava de repetir isso pra mim e pros garotos. Estes, aliás, se deliciavam em poder dividir com uma mulher os estímulos que seus corpos recebiam, e se divertiam ainda mais em saber que toda aquela luz vermelha também incitava bastante os meus sentidos. Os comentários entre nós sobre elas eram os piores, no melhor sentido que o pior pode ter.
Deparávamo-nos com o que no nosso conceito transitavam entre aberrações e gostosas. Éramos cruéis com o primeiro e depravados com o segundo. Talvez eu fosse a pior entre eles, em pensamento. Por momentos tentava me imaginar com as figuras bizarras e obesas – quase sempre travestis -; e isso de alguma forma me excitava, mas o lapso de morbidez mesclado com misericórdia passava e eu me assustava comigo mesma. Começava a rir e voltava a ser cruel junto aos garotos. –Jesus sacramentado! Quem consegue trepar com essa anomalia? –Rapaz, tem uns gringos aí “muito doido”! –Com certeza compensam no boquete. Era muito bom sermos politicamente incorretos; era muito bom expressar sem receio nossos preconceitos, porque lidar com o despudor e despir-se do quer que seja não significa apenas admitir subversões, fantasias, perversões – ou como se queira chamar -, mas, sobretudo, assumir o objeto de discriminação. Esse é o primeiro passo para a reconstrução de parâmetros; para a tolerância.
Ali, no meio de toda aquela sacanagem, com homens entrando e saindo das vitrines com sorriso de orelha a orelha eu me sentia livre em pensamento e em espírito. É bem verdade que não havia mulheres participando do entra e sai de vitrines, e parando para contabilizar, existia uma fração mínima delas em relação aos homens que transitavam pelo Distrito Vermelho. Andavam sempre em grupo, quase sempre acompanhadas de seus parceiros, todos provavelmente turistas, e as que caminhavam sozinhas pela área logo retiravam uma chave do bolso e em seguida se concluía que eram residentes do bairro. Eu observei essas mulheres. Quase nunca teciam comentários em relação à realidade instigante materializada diante de todos, se limitavam a escutar o que os homens proferiam; muitas não resistiam e riam-se por nervosismo ou por conivência. Eu era capaz de ler cada olhar analítico que essas mulheres dirigiam às vitrines. Analisavam caladas. Por segundos invejavam aquelas putas e cobiçavam àquele posto; outrora flertavam – novamente caladas – e já não desejavam mais ser alvo do desejo alheio, senão ansiavam ocultamente estar com aquelas garotas. É interessante como um corpo nu se transforma sem rótulo em um corpo erótico. Somos capazes de desejar a tudo e a todos. O desejo antecede a castração. Ali, diante daquelas mulheres tive certeza disso.
Realidade e fantasia duelavam o tempo todo dentro de mim e meu corpo clamava pelo toque. Os garotos começavam a estar impacientes diante de tantas possibilidades, e nossos bolsos coçavam. A grana estava curta pra todos e “volta e meia”, resíduos de racionalidade socialmente construída insistia em nos recordar: - Fala sério não vamos pagar por uma puta, a gente tem berço, formação e é gatinho, porra. - Ainda mais eu, uma garota! Que classe de mulher paga por uma puta? Decidimos. Íamos embora dali curar nossas tensões sexuais em algum bar.
A vida muda a cada esquina que se dobra. Nesse instante o clichê da oração dotou-se de sentido como nunca. Paralisei. Fui incapaz de concretizar o óbvio: toda puta olha pra você de modo que você se sinta extremamente especial e atraente e assim, pague por ela. Isso já não importava. Eu estava diante da harmonia perfeita dos traços, da distribuição precisa das massas. Pela primeira vez na vida me deparei com a tradução humana do sublime, algo que jamais imaginei que fosse capaz de existir entre os humanos. Entrei em catarse. Diferentemente das outras ela era simpática e paciente. Sim, porque as putas do Red Light em geral não permitem que ninguém fique mais de 2 minutos parado diante da vitrine sem tomar a decisão de entrar ou de seguir caminho. Logo se irritam, soltam um “fuck off, go away” e te fazem sentir ridículo e confuso. Apresentam-se ali como produto, e como tal, a lógica diria que ao entrar em uma loja o consumidor tem o direito de analisar em seu tempo o material e decidir, então, comprá-lo ou não. Ali o sistema é diferente. Mas, ela como ser elevado - apesar de ser puta e de todo mundo saber -, atuava com distinção. Abriu três vezes a porta da sua vitrine convidando-me a entrar. Falava com doçura do alto de seus 1,75m. Eu não sabia o que fazer. Olhava os meninos, e eles também catatônicos não sabiam o que opinar. Ela então abriu a porta mais uma vez, sorriu pra mim e me estendeu a mao de maneira irrecusável. Aquele ato de ternura me tranqüilizou e eu entrei. Os garotos não acreditavam no que viam, os transeuntes também não. Ela deixou a porta aberta imaginando que um dos garotos fosse meu namorado, rapidamente lhe confessei que seriamos apenas eu e ela; surpreendeu-se: “Oh my god, you are very beautiful, it´s funny”.
Subimos alguns degraus e entramos no seu quarto. Compacto, tinha apenas uma cama junto à parede, uma pia, uma cadeira para o cliente sentar-se e um pequeno closet para os seus objetos pessoais. Nada que se parecesse ao glamour das suítes de motel, sobretudo porque não tinha espelho. Tudo muito clean oscilando entre o que se parece a um consultório médico e uma sala de massagem. A diferença em relação a ambos se estabelecia pelas protagonistas do lugar, ela, e é claro, a luz vermelha.
Apesar da aura divina daquele ser seu discurso me fez lembrar que se tratava de uma puta: “antes o dinheiro, baby. São 50 euros”. Ela era realmente profissional. A melhor puta de todos os tempos - pensei e supus na minha humilde condição de nunca ter contratado o serviço de uma antes. O fato é que nela a mais vil palavra poderia ser dita e ainda sim soaria como Beethoven em dia de grande inspiração. Não é exagero.
Ela sentou-se na cama e eu diante dela, na cadeira. Éramos perpendiculares. Nervosa, perguntei se poderia fumar. –Claro que sim, pode ficar a vontade. Não encontrei meu isqueiro; e não seria capaz de encontrar nada. A sua presença avassaladora não permitia o mínimo desvio de atenção. Como uma rainha levantou do seu trono, a cama, e cordialmente acendeu o meu cigarro. Perguntei o seu nome. – Lina, e o seu? –Meu nome é Ela. –Você é a mais linda de todas. Ela sorriu e me retribuiu o elogio. Calamos. O silêncio é a reiteração da palavra.
Eu queria descobri-la, destrinchá-la, absolutamente tudo nela me interessava. Ela esperava uma iniciativa minha, um pedido sexual, mas eu já não era mais capaz de percebê-la como puta; ela, antes objeto de meu desejo em fúria, havia se transformado em Lina, o artefato maioral da minha admiração. Embora seus longos cabelos dourados junto às suas tetas proeminentes tentassem me convencer o tempo inteiro do contrário, resultava fácil repensar o pecado; bastava alinhar meu olhar com o seu e concretizar a inexorabilidade do fato: eu estava diante de uma santa; havia que respeitá-la. Sim, porque sua beleza era um dom, e como tal, o divino fazia parte do seu ser. Olhos verdes, grandes, expressivos, boca grande, lábios desenhados, sorriso branco, colossal; uma combinação de traços europeus e árabes. Eu ainda não sabia a sua origem. Eu ainda não sabia nada sobre ela.
-Você fuma muito, não?
- Estou nervosa.
- Você é a primeira mulher que entra aqui sozinha. As mulheres costumam vir acompanhadas dos namorados.
-Está surpresa?
-Sim. Você é bonita e estranha. Inédito.
–Eu quero saber sobre você. Você não se sente só?
-Não. (Risos)
- Eu me sinto só.
-Eu não paro pra pensar nisso. Minha vida é divertida.
-Passa o isqueiro, por favor.
-Eu espero que você não se mate de tanto fumar. Você é bonita.
-Por que você é puta? Eu preciso saber sobre você.
-Minha vida era um tédio e se eu deixar ele sempre toma conta de mim. Aqui não, cada dia é diferente. Eu fujo dele.
-Como assim?
-Eu fazia faculdade de contabilidade aqui em Amsterdam, tentei depois outras áreas e as coisas permaneceram sem graça.
-Você ta me dizendo, então, que gosta de ser puta?
-Sim, eu sou feliz assim.
Silêncio.
Eu comecei a chorar. Não por pena, não por raiva. Chorei por paixão e impossibilidade. Dei-me conta que não havia nada que eu pudesse fazer pra que ela fosse minha. Ainda que eu levasse a vida toda pagando por ela, sua vocação era ser puta. Os 20 minutos se alongaram pra 30 porque ela havia gostado de mim. Contou-me de seus pais libaneses, da sua rotina de trabalho, desmistificou a idéia de que a maioria das pessoas que entra lá é pra transar. Não. Mais da metade de seu ofício se resume a punhetas rápidas e sexo oral com camisinha. E a recíproca entre o cliente e ela não pode ser verdadeira: ninguém pode chupá-la ou masturbá-la. Quanto à penetração, essa funciona como algo mecânico.
-Nossa! O que eu posso fazer com você então? Porque com mulher é diferente.
- Você eu deixo me tocar.
-Eu quero me matar.
-Por quê? O que aconteceu?
-Porque você é linda, é puta, e eu simplesmente não sou capaz de fazer absolutamente nada contigo. Nem a minha mãe eu respeitei tanto na vida.
- Você é realmente bonita e estranha. Risos. Vou lembrar sempre de você.
-Eu queria te beijar.
-Putas não beijam, baby. Desculpe.
-Não precisa pedir desculpa. Eu te respeito muito e aceito a sua condição de puta.
-Você tem que ir agora. O tempo acabou.

Levantei-me em direção a ela, acaricie com amor e deferência suas tetas, como quem pede a bênção. De pé, ela me abraçou profundamente com afeto e gratidão. Eu havia sido o trabalho mais fácil de sua vida. 50 euros por 30 minutos de bate-papo agradável. Muito abalada e ainda transe, dei-lhe as costas dirigindo-me a saída. Metros a frente escutei, -Ela! Leva o isqueiro com você. E se algum dia voltar a Amsterdam e me encontrar por alguma esquina é só bater no vidro, você é minha convidada e das meninas.

Ela não perde esse isqueiro por nada. Sua chama é alta e vivaz, como Lina. Engraçado que não haveria objeto melhor para representar o que outrora foi objeto de seu próprio desejo – uma puta, a mais linda das putas. Cada vez que Ela ativa sua chama desnuda-lhe em pensamento. Ainda assim, não é capaz de tocá-la. Sua imagem se cristalizou dentro de si como algo sagrado. Cada cigarro acendido pelo seu isqueiro – de puta – lhe faz lembrar que há limite pra perversão, ainda que não haja parâmetro pra isso. Eu que sou Ela volto ao compartimento de dentro, paro e penso. Só duas coisas são capazes de bloquear nosso ímpeto: paixão e covardia.

A contradição faz parte do ser; a sedução também.

Silêncio.

Qual é a espessura exata da tênue linha que separa realidade e desejo?

A palavra é a reiteração do silêncio.

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Esse é um texto de Virgínia Canela, heterônimo de mim