segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Meu Dom (bom) Jorge

Eu estou grávida. De Jorge. Não! Jorge não é o pai, Jorge é o meu filho, cujo pai só o Universo saberá quem é.
Meu Dom (bom) Jorge. O dom da própria vida carrega nele a natureza, a arte – ou ao menos a tentativa desta -, as caras de gozo, os pés retorcidos, e o auge da democracia: o pensamento e a morte.
Jorge ainda nem foi concebido, mas já nasceu, aqui, bem dentro de mim, destino do amor acumulado durante todos esses anos, grande parte dele rejeitado ou incompreendido por muitos, amor então que virou só meu. O meu amor para o meu homem. Meu Dom, meu Jorge, minha vida.
Jorge nasceu também na poesia entoada pela melodia e pelas tentativas inúmeras de arranjos. Ele quase morreu, e se ele morre, eu morro também. Só uma mãe experimenta profundamente a extensão do infinito.
Jorge é tão meu que deveria nascer com a minha cara. Mas, a sua louca mãe é tantas numa só e já peregrinou por tantos lados, que tem medo de que o seu filho possa pagar pelas suas aventuras e inseguranças.
Mas, não, não! Jorge é o Dom - Dom Jorge!- e é amor não contaminado. Não haverá risco de deformidades. E no caso de que houvesse, sua louca mãe saberia amar ao diferente porque ela sabe que a diversidade rege o mundo, e a ela mesma – mais do que isso, há uma verdade inquestionável: uma mãe sempre amará ao seu filho.
Eu espero meu filho, meu guerreiro da luz, que você se orgulhe da sua mãe e que o mundo seja seu. Ah meu Jorge! Meu bom Dom Jorge! Vai pra vida, segura na mão de Deus e vai...
Cobras e dragões aparecerão pelo caminho, mas você será imune a tudo isso. Vai, meu filho, vai pro mundo sem remorso, e se um dia quiser regressar saberá que sua louca mãe estará em alguma parte do planeta lhe esperando pra lhe abraçar e pra cantar a sua canção.
Ai, meu Jorge, meu Dom, meu bom homem! A vida começou a ter algum sabor no dia em que você nasceu. Mas, só começará a fazer sentido no sagrado dia da sua concepção. Quando eu lhe conceba, nascerei também. Por hora, sou apenas uma existência iminente que sobrevive pelo desejo de lhe ter para que você, então, seja.

Skydiving

Quase sempre tenho a sensação de que estou caindo de um precipício sem fim. Levo muito tempo esperando pelo impacto decisivo e irreversível, mas ele nunca acontece. Então, sigo assim, em queda livre, com uma sensação agonizante de liberdade.
Muitos, que não eu, poderiam desfrutar da suposta adrenalina como quem curte o processo sem se preocupar com o resultado final. O fato é que o processo se trata de uma queda, e que ninguém, senão a própria vida, nos ensina a cair; depois de já cair tanto, pode que o corpo se acostume aos maus tratos e desenvolva um método mais eficaz de cicatrização, mas o espírito submerge num ciclo entediante de previsibilidade e já não reage à inércia.
Dizem que no final do precipício há sempre uma mola pra nos levantar ou mesmo amigos dispostos a nos segurar pra que a dor do impacto seja menor.
Talvez eu não deseje nem um, nem outro, apenas o chão rígido com a sua dose inexorável de realidade. Talvez eu precise me estraçalhar, fazer-me em pedaços, pra que então, a Mãe Natureza se encarregue de me recompor.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

hoje tomei o ultimo lexotan da cartela. nao tenho mais receita. foi o último do último depois de desaparecer de minha psicanalista e conseguir falsificar a data de umas antigas requisiçoes por mais 3 meses; até agora que acabou.

eu estou só, numa pequena casa de um casal de amigos que todos os finais de semana vai para outra cidade e me deixa aqui em Vista alegre, um bairro na zona norte de Compostela e que de alegre só tem o nome.

meu quarto é quadrado, de paredes amarelas, à mesma altura da rua. qualquer um poderia entrar nele, por isso sempre durmo com as janelas fechadas e só com um trocinho de persiana aberta. acho que essa é a décima-primeira casa que oficialmente me instalo desde os três anos e meio atrás em que sai da casa de meus pais.

Vista alegre é bastante afastado do centro o que dificulta o meu contato com o mundo exterior e com muitos amigos. entao, eu aproveito a circunstância pra desculpar o meu isolamento e assim poder me isolar ainda mais.

ando bastante adoentada, gripe sintomática, reflexo de uma mente pertubada e insegura. vista alegre está em obras, e apesar de todos os dias reclamar da falta de respeito da prefeitura em autorizar obras de madrugada, no fundo estou adorando dita transgressao, porque diariamente os tratores e obreiros têm acompanhado a minha insônia e preenchido de ruídos a minha solidao.

eu sempre fui assim; sempre gostei de dormir escutando o barulho da rua pra nao me sentir só; meu quarto parece povoado por estranhos que se confundem com os conhecidos dos meus sonhos.

aqui, em Vista alegre, de frente pras paredes amarelas penso nas possibilidades incertas - e algumas impossíveis - de minha vida e lembro de como meu amor pela Espanha só cresceu principalmente depois daquele encontro na janela do carro em Pontevedra, depois de duas horas de show.

olhei pra você e me senti em casa. tive a sensaçao de finalmente haver encontrado o meu lugar, o aconchego, o reconhecimento de mim no outro, o espelho em que narciso nao se vê - em que ele fecha os olhos e deixa de ser para entao só ser.

aqui, em Vista alegre, penso diariamente em você e, como talvez o seu simples existir (fosse ou) seja o milagre de minha vida, o bom motivo pra eu nao regressar à casa porque minha casa é você. e na verdade, é assim que eu me sinto. uma eterna marinheira, navegante, nômade - sem bússola, refém do vento e da maré. talvez, necessite atracar em ti ou talvez a minha embarcaçao necessite ser tripulada.

mas, você, a Espanha, a comunhao e o palco sao apenas mais um amor platônico.

por hora, fico com a realidade das paredes amarelas de Vista alegre que entonam a minha febrícula - e que pouco a pouco vou aprendendo a amar, até que chegue a hora de partir, uma vez mais-; e com a minha solidao - sim! porque os tratores já nao soam mais.